terça-feira, 22 de dezembro de 2009

O provérbio de Dieb e o trator


Dieb Habib era um velho coçador sírio. Sim, ele não era um caçador ou agricultor como a maioria dos protagonistas dos provérbios. Ele coçava mesmo, só que sempre viveu bem. Bebia, e bebia bastante, das águas que passarinho sírio algum jamais bebeu. Sua força desenvolvia-se de modo diretamente proporcional aos cabelos que cresciam em sua cabeça e inversamente aos que apareciam em suas costas. Mas o velho era legal, e fazia um esforço sobre-humano para manter-se legal sempre, em todas as situações, por mais que seu instinto o guiasse por caminhos contrários ao do bem estar social.

Dieb era o único sírio ateu de sua cidade. Não gostava de religião nem do que ela fazia com as pessoas, mas pergunte se alguém sabia disso.

Para todos, Dieb era santo. Sim, santinho. Um dia, caindo de bêbado, livrou uma indefesa garotinha de um atropelamento, esbarrou na menina no meio da rua e ficou ele, atropelado por debaixo do carro. Virou herói. Um santo manco, pois que o incidente o presenteou com esta seqüela para que sempre se lembrasse de sua divindade. Sem mais poder trabalhar e sem conseguir ficar o dia todo bebendo o velho passou a comparecer à igreja quase que diariamente. Sorria para todos e se tornou rapidamente o católico ortodoxo mais fervoroso, indicado pelo deus que ele não botava fé nenhuma como filho mais legítimo, e nisso todo mundo acreditava; ele era santo. Habib fazia de tudo para ser o bem quisto, orava em todas as refeições que fazia acompanhado e ainda gostava da brincadeira, pregando e agregando ovelhas ao rebanho do Senhor.


Agora, só tinha uma coisa que o homem gostava mais do que o fato de conseguir ser sempre uma simpatia: um velho trator que brilhava sob seus cuidados. Dieb passava tardes inteiras cuidando desse tosco equipamento, que lhe rendia o suficiente para garantir-lhe a boa cachaça da semana, além de algo para comer. Ele alugava o trator para os agricultores da igreja, que lhe pagavam com alimentos, bebidas e preces de melhora. Sim, pois que Dieb adquirira no atropelamento, além da perna coxa, uma doença na cabeça - era começar qualquer ofício e as dores apareciam. Eram intensas, e às vezes repercutiam em todo o resto do corpo e, por causa delas, cessou os trabalhos, passando a viver de renda. Na verdade, Habib não via sentido algum em trabalhar todos os dias, ainda mais se o trabalho não estivesse intimamente ligado ao seu desenvolvimento pessoal.


Anos se passaram e o ateu Habib manteve seu disfarce sem alimentar qualquer desconfiança. Pelo contrário, a memória das pessoas fazia com que sua santidade somente aumentasse. Ele mesmo já começava a acreditar que realmente começava a acreditar em Deus.


Um dia, quando dava um polimento na parte dianteira de sua amada máquina para que ela seguisse para mais um trabalho numa fazenda vizinha, a bicha ligou sozinha e avançou pra cima do velho. Habib, chocado e acuado, viu o trator iniciar o giro de suas lâminas que brilhavam pelos seus próprios cuidados. Uma mão voa. Sangue, muito sangue. Que diabo é isso!? é o que pensa o indefeso, vendo que agora seu amigo trator já consumira todo o seu antebraço. O homem estatelado via sua vida se esvaindo pedaço a pedaço, sentindo toda aquela dor e ainda parecendo que ela não lhe pertencia. Seus gritos já não eram seus, tampouco os membros que lhe iam sendo roubados, um a um. Tentando livrar o braço, meteu a perna na máquina e nem se pode dizer que meteu as pernas pelos braços, pois aquele ser maldoso lhe tirou foi tudo. Opa! Outro braço decepado, menos outra perna até que foi embora também o pinto que tanto lhe foi útil. Não para a reprodução, já que Habib não tinha filhos - ou não tinha notícia dos que tinha, mas seu volumoso membro que o auxiliou em diversas conquistas, agora, também já era. E já eram também os bagos, fatiados pelo corte que o próprio Dieb havia trabalhado. Traído pelo seu amor o homem se entregou. Sem mais se debater, entrou de vez com a cabeça na máquina, que foi triturada até não restar qualquer pensamento.


O que realmente aconteceu àquele ateu até hoje ninguém sabe, pois que ele não voltou para contar.


Talvez o fato de não crer em outra vida tenha feito com que seu espírito nem chegasse a existir. Talvez o próprio deus tenha ligado o trator, ou de repente foi o diabo mesmo, vendo que Dieb, brincando de fiel, já começava a acreditar que acreditava na figura que o demo mais odiava. Sobre o acontecido mentiram os jornais, inventaram as pessoas e brincaram as crianças. Colocaram o nome do defunto na Igreja: “Paróquia do Santo Dieb”, “Igrejinha do Santo Ateu” para os íntimos.


Sentido do provérbio: Não minta. Seja temente a Deus e antes de limpar as lâminas de um trator repare se não tem, junto à ignição, nenhuma criancinha pilantra que você, por azar, salvou de um atropelamento.

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