terça-feira, 22 de dezembro de 2009

Férias do Livre Arbítrio


Às Vinte e Uma e Quarenta e Sete choveu lá em casa. Tava na rede pensando num monte de coisa, sem foco, sem motivo, sem destino, e de repente começaram, eram poucos e indefinidos mas marcaram a presença. Tenho um negócio com os graves, sinto mais a tremedeira que a precisão. As gordinhas caiam esparsas, pontuando em baixa freqüência, dando a entender que pudesse ser algum barulho de bicho, como se fosse bicho vindo de todo lugar. Saí da rede, tava deitado na rede, saí e fui ver o que tava acontecendo. Ouvi os primeiros no telhado, outros mais ali na grama, e foi que eu lembrei que tava na hora de tomar o remédio, beleza, cadê o remédio?

Estou tomando um remédio bem importante que é de doze em doze horas, sem contar que estou de cama também. É que arrumei o joelho e tenho que ficar um tempo de molho. O objetivo é ficar sem fazer porra nenhuma o máximo de tempo possível. Não precisa ser nenhum hiperativo para imaginar o que isso significa. Está bom, eu confesso, depois de um tempo comecei a achar até interessante. Estou em recuperação, mas não sinto dor alguma e parece que tá tudo muito bem, só fico parado por que o doutor mandou.

O que importa aqui é que me foi privada a escolha. A opção é única. Isso promove um estado vegetativo que pode te imputar o poder de decisão de uma planta da sombra, que não precisa nem se preocupar se hoje vai fazer sol!

A gente tem que tomar cuidado com o que pede. Na hora da anestesia, a última coisa de que me lembro, é um flash do camarada anestesista me falando “também sou Wladmir”,  e logo depois me aplicando um negócio com um papo de que agora eu ia ficar um pouco tonto, e eu, já dopado, perguntando se ele podia colocar um pouco a mais pra eu apagar até a hora que começasse a chover.

Às Vinte e Uma e Quarenta e Sete choveu

É curiosamente esquisito ficar dopado a ponto de não lembrar de nada. Acordar em outro lugar. Tenho até vários amigos que estão acostumados com esse tipo de situação, mas acho que aqui é um pouco diferente. Já caí na manguaça e sei que ela parte de uma progressão da loucura até o ponto em que a rotação terrestre fica perceptível e daí pra frente tudo pode ficar mal. No hospital foi diferente, eu tava bom, limpinho e de repente, “você vai apagar”, tipo hipnose, cataplau. Acordei três quatro horas depois, de camisola no quarto, ainda meio alucinado.

Sério, é muito estranho. Superada essa fase comecei a me lembrar de como o tempo apagado foi bom. Lembro de acordar pedindo mais. Eu dormi bem, e sonhei foi muito. O que me fez até repensar alguns valores.

Nunca fiquei em coma, tenho até uma tia que ficou, mas não voltou pra contar como é que foi. Também não pesquisei nada antes de escrever. Mas se as pessoas sonham assim enquanto estão apagadas... bem, eu achei foi muito bom. Uma coisa é ficar sentindo dores, a outra é apagado total.

Naquele meio tempo, entre o pós-operatório e a volta a vida, ainda dopado, aconteceu algo que contribuiu imensamente para uma mudança de paradigma na minha pessoa.

Andar de maca.

Pensa num cara tímido, que anda sempre olhando o chão, pisando forte para não escorregar, muito ligado nos buracos e protuberâncias que se apresentam nessa vida faceira. Pois então, eis que de repente, com o estado filosófico já modificado pela alteração da consciência, me vi mirando o teto. Sim, deitado, protegido por uma auréola de metal, o olhar zarolho pesquisava atento os pormenores do fundo da superfície. Sem dor, sem movimento voluntário, levado pela vida com cuidado, a favor do vento, sem escolha e sem qualquer vontade de escolher, praticamente uma ameba, eu viajei de maca.

Férias do livre arbítrio.

Pensei até que deveria existir, quem sabe quinzenalmente, o dia da Maca. E que cada evento fosse distribuído de forma que o viajante da maca não seja piloto no mesmo dia.

É imprescindível que haja um espaço de tempo entre o promover e ser acometido de sensações marcantes. Isso para que seja devidamente perceptível a valorização de cada um dos sentimentos, uma vez que a visão do piloto também possui significação importante. O papel de Deus, responsável pela a vida alheia, traz à tona o líder e o gestor. Muito diferente das férias do livre arbítrio gozadas pelo viajante, no papel do piloto o sujeito se encarrega da administração do lazer e aquisição de conhecimento de outra pessoa.

Induzir a alegria ou a tristeza, tornar o sujeito um sábio ou um ignorante é o mesmo que exercer a divindade.

Opa, que nós já estamos cercados de deuses.

Talvez esteja na hora de voltar das férias e trocar de lugar com o piloto.

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